Sem regulamentação necessária, disparam processos sobre home office
À medida que o teletrabalho é cada vez mais utilizado durante a crise da Covid-19, cresce também o número de ações judiciais trabalhistas que envolvem o tema. Dados do Termômetro da Covid-19 — plataforma mantida pela ConJur em parceria com a Finted e a DataLawyer Insights — mostram que, dentre quase 130 mil processos trabalhistas relacionados ao coronavírus, 5.138 citam a expressão “home office”.
Já um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo a partir de dados das varas de Trabalho mostrou que os casos de trabalhadores reclamando das condições do home office aumentaram em 270% entre março e agosto de 2020, se comparados ao mesmo período do ano passado.
A preferência natural ao trabalho remoto durante a situação de epidemia explica o aumento, mas ele também pode ser compreendido pela “falta de uma regulamentação mínima necessária para disciplinar esta nova modalidade de trabalho à distância”, como explica Ricardo Calcini, professor de Direito do Trabalho da pós-graduação da FMU. Ele diz considerar haver uma tendência pela continuidade do crescimento de ações do tipo.
“Já se tem notícias de jornadas estafantes à distância, de controles excessivos e invasivos à privacidade dos trabalhadores, condições inadequadas de trabalho, trabalhadores assumindo, sozinhos, despesas com energia elétrica, equipamentos”, aponta José Roberto Dantas Oliva, advogado e juiz do Trabalho aposentado.
Definições legais
A redação original do artigo 6 da CLT assinalava a ausência de distinção entre trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que estivesse caracterizada a relação de emprego. Além disso, o artigo 83, que permanece sem alterações, já previa o salário mínimo ao trabalhador em domicílio.
“O home office é previsto desde o nascimento da CLT, pouco importando que não houvesse, quando criado, a evolução tecnológica hoje existente”, assinala Oliva. A Lei 12.551/11 fez leves alterações no artigo 6: acrescentou o trabalho à distância que não seja no domicílio do empregado, e equiparou o comando virtual ao controle direto tradicional.
A reforma trabalhista de 2017 acrescentou à CLT disposições específicas sobre o teletrabalho. Ele foi definido como a modalidade em que as atividades são desenvolvidas predominantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação. Por isso, embora sejam confundidos, teletrabalho e home office são ambos espécies de trabalho à distância, como explica Calcini.
O permitido, o proibido e o ideal no trabalho remoto
Oliva destaca que o artigo 75-C da CLT, acrescido pela reforma, obriga que a modalidade de teletrabalho fique expressa no contrato individual. Também é permitida a alteração entre regime presencial e teletrabalho por acordo entre as partes, ou até mesmo por determinação do empregador, com exigência mínima de 15 dias para a transição.
Apesar de a Medida Provisória 927 — que regulamentou o teletrabalho no início da crise da Covid-19 — ter perdido validade em junho, Calcini indica que vivemos em um sistema híbrido quanto ao tema: “As garantias que o empregado possui são aquelas previstas, principalmente, nas normas coletivas de trabalho, sendo que na ausência de ditos instrumentos deve o empregador disciplinar, via regulamento interno ou empresarial, as regras que serão aplicadas às relações de trabalho executadas à distância”.
Segundo o professor, é possível se negociar diversas regras trabalhistas, exceto aquelas vedadas pela própria legislação. Mas não se pode reduzir ou suprimir direitos que já estejam previstos nas normas coletivas de trabalho, já que atualmente prevalece o princípio do negociado coletivamente em detrimento do legislado.
Não há previsão quanto à obrigação de fornecimento dos equipamentos necessários ao trabalho, por exemplo. Assim, ele fica sujeito a regramento próprio nos instrumentos coletivos de trabalho. As partes podem até negociar, individualmente, de quem será a responsabilidade pelo equipamento, contanto que o empregado não tenha que suportar sozinho o custo.
Oliva lembra que os trechos trazidos pela reforma trabalhista não deixam claro se a questão dos equipamentos e da infraestrutura necessária para o trabalho remoto é de responsabilidade do empregador, e estabelecem apenas que isso deve ser previsto em contrato escrito. Para ele, essa legislação “deixa campo aberto para cláusulas que podem ser prejudiciais ao trabalhador e fomentar litígios”.
O principal problema do sistema remoto, na visão de Calcini, é o controle da jornada à distância. A lei não traz nenhuma exigência específica sobre como deve ocorrer a marcação dos horários.
Para dar mais autonomia aos trabalhadores e afastar da empresa a obrigatoriedade de pagamento de horas extras, a recomendação do professor é o ajuste dos contratos e a elaboração de aditivos para tornar os empregados teletrabalhadores efetivos. Dessa forma, eles não estarão sujeitos ao controle de jornada, conforme o artigo 62 da CLT.
Já Oliva diz que a inviabilidade de controle de jornada à distância é um falso argumento. Para ele, esse controle é, sim, possível e, às vezes, até mais eficaz que o presencial. Ele admite que o pagamento de horas extras é mais difícil, mas também não enxerga como impossível.
Quanto aos benefícios normativos previstos em acordos ou convenções coletivas de trabalho, Calcini explica que todos devem ser mantidos, independente de o trabalhador estar em casa ou presencialmente na empresa. Isso inclui o vale-refeição e o vale-alimentação. Apenas o vale-transporte, que possui lei própria, não deve ser garantido, já que ele pressupõe o deslocamento entre os ambientes de casa e trabalho.
Futuro do home office
Ambos os especialistas concordam que a modalidade remota de trabalho precisa de uma regulamentação própria no futuro.
Calcini foi convidado pela Câmara dos Deputados para elaborar um anteprojeto de lei que estabeleça regras para o home office. O documento será discutido por uma equipe de 70 pesquisadores brasileiros — “o maior e mais abrangente estudo feito no país até o presente momento acerca do trabalho à distância”.
A fragilidade de proteção à integridade do empregado na legislação vigente incomoda Oliva: “O trabalhador precisa ter preservada sua higidez física e mental e isso passa, inclusive, pela necessidade de desconexão. Não pode ficar à disposição, remotamente, em tempo integral”.
Ele conclui: “É preciso, portanto, encontrar pontos de equilíbrio que evitem que o empregador transfira parte dos riscos do negócio para o trabalhador”.
Fonte: Conjur