Trabalho no pós-pandemia será híbrido, flexível e conectado
Para especialistas, desafio de empresas e trabalhadores será manter e até maximizar a produtividade em novos espaços
Exigências dos tempos de pandemia, o longo período de isolamento, as restrições de circulação e as novas regras de convívio social transformaram para sempre os modelos convencionais de trabalho. De uma hora para outra, empresas e trabalhadores tiveram que virar a chave e criar jeitos diferentes de executar tarefas e se relacionar no ambiente profissional. Após mais de um ano de crise sanitária, especialistas de diferentes áreas convergem para uma mesma perspectiva: o trabalho pós-pandemia será híbrido, flexível e conectado.
Para entender essa projeção, é preciso retroagir ao primeiro efeito da pandemia no trabalho, que foi a adoção do home office em todas as atividades que permitiram o formato. No Brasil, segundo a Pnad Covid-19 do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 9,1% dos trabalhadores estavam atuando de forma remota em novembro de 2020, o equivalente a 7,3 milhões de pessoas. O índice subiu para 28,7% entre os brasileiros com nível superior completo ou pós-graduação.
Entre as empresas, pesquisa realizada pelo ADP Research Institute em dezembro de 2019, ou seja, antes da pandemia, apontou que somente 25% delas contavam com políticas de home office formalizadas. Em maio de 2020, novo levantamento revelou que 44% das organizações tinham adotado modelos de teletrabalho.
Mariane acredita que, à medida que o fim da pandemia se avizinhe, tanto empresas quanto funcionários vão voltar, lentamente, para uma situação intermediária. “Modelos de trabalho híbridos devem prevalecer. Além disso, tenho a impressão de que a força de trabalho eventual deve ganhar força”, afirma.
Segundo a executiva de RH, com as recentes políticas de flexibilização de jornadas e salários, as pessoas se deram conta que não existe 100% de estabilidade mesmo nos modelos tradicionais de trabalho. “Isso pode tornar alguns trabalhadores mais corajosos para empreender”, diz Mariane.
‘Coisa do passado’
Para os especialistas, novas formas de encarar o trabalho, mesmo remotamente, devem dar o tom no pós-pandemia. Segundo o professor André Miceli, coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), até o modelo de home office “engessado” que conhecemos na pandemia é “coisa do passado”.
“O que vem para ficar ficar é o trabalho híbrido. E não necessariamente em casa, mas sim em qualquer lugar. Viajando, num café, na casa do colega. Conectado, o funcionário pode trabalhar de onde quiser, seguindo o modelo ‘anywhere work’ (ou ‘anywhere office’), uma tendência da cultura organizacional. Por meio dele, o mundo inteiro vira uma opção.”
Miceli coordenou uma edição especial sobre home office para a publicação de tecnologia e negócios MIT Technology Review Brasil. O levantamento, realizado em dois momentos (abril de 2020 e dezembro de 2020), ouviu cerca de 2 mil pessoas que adotaram o teletrabalho. Entre achados interessantes, o estudo apontou os dois principais problemas enfrentados na modalidade.
Senso de pertencimento
A primeira grande dificuldade detectada no home office foi o prejuízo ao senso de pertencimento. “Os funcionários, especialmente aqueles contratados durante a pandemia, demoram para se sentir parte da organização”, explica Miceli. “O senso de pertencimento é fundamental para a construção de cultura. Uma empresa sem cultura é mais fraca. Os líderes terão, portanto, que construir redes para que esses grupos tenham a cara da empresa.”
Outra queixa dos funcionários foi a dificuldade de estabelecer um senso de confiança entre a equipe, um atributo importante para a produtividade. “Não tem mais cafezinho, não tem corredor, almoço ou happy hour. Os colegas só se encontram no zoom e perdem a oportunidade de criar vínculos sociais”, diz o professor da FGV. “O desafio do líder será, portanto, criar situações que façam com que as pessoas se conheçam, para criar esse senso de confiança entre elas.”
A pesquisa coordenada por Miceli mostrou, ainda, que a performance no trabalho remoto está diretamente relacionada a traços de personalidade. “Funcionários mais conscienciosos, do tipo disciplinado, têm mais facilidade no formato, assim como indivíduos com maior abertura a situações novas”, diz. “Já pessoas extrovertidas não performam tão bem, pois sentem falta do convívio com os colegas.”
O modelo híbrido, que mistura espaços de trabalho corporativos e home office, numa frequência de 1 ou 2 dias em casa e o restante da semana no escritório, foi considerado o mais adequado por 100% dos entrevistados na pesquisa da MIT Technology Review Brasil. Para Miceli, chama a atenção o fato de que mesmo os jovens com até 25 anos, grupo supostamente mais afeito à conectividade, façam questão de manter o trabalho presencial algumas vezes por semana.
O professor da FGV lembra ainda que, embora o home office pareça uma alternativa muito econômica para as empresas num primeiro momento, isso não é necessariamente verdadeiro. “Em geral, os funcionários trabalharam com seus próprios equipamentos eletrônicos, suas cadeiras, seu plano de internet”, diz.
“Mas existe uma pressão social para que isso seja organizado, o que pode trazer uma instabilidade para o modelo que se estabeleceu. Quando o sistema jurídico organizar o trabalho remoto, definindo, por exemplo, que as empresas devem equipar os espaços por sua conta, pode não ser uma opção tão atrativa.”
Projeto de lei
A necessidade de regulamentar o home office no Brasil é justamente um dos desafios da advogada Fernanda Perregil, especialista em direito trabalhista e uma das autoras do projeto de lei 5.581/2020, que dispõe sobre o teletrabalho e propõe alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Entre direitos e deveres de cada parte, o texto estabelece, por exemplo, a criação de códigos de conduta, a adaptação do espaço de trabalho e a proteção de tutelas especiais (como estagiários, pessoas com deficiência e idosos).
Para garantir que o ambiente profissional seja mais justo e saudável, Fernanda acredita que o primeiro passo para as empresas é adotar códigos de conduta, ou seja, políticas internas com regras específicas para o teletrabalho. “Há muitas possibilidades, dependendo do modelo de negócio: algumas organizações interrompem o sistema após determinado horário, outras proíbem que gestores e funcionários sejam acionados fora do expediente… O importante é que o tempo de descanso previsto em lei seja respeitado e que, no final, todos conquistem o direito à desconexão.”
Proteção da saúde mental
O direito à desconexão é uma nova peça no tabuleiro do home office e promete movimentar as discussões acerca do tema. Para a advogada, trata-se de condição fundamental para preservar a saúde mental do funcionário no período de trabalho remoto. “A tecnologia propiciou muita eficiência em termos de produtividade, mas ao mesmo tempo invadiu a vida pessoal do trabalhador”, diz a advogada. “Por isso, é vital que haja regras muito claras para que esse limite não seja ultrapassado.”
Fernanda também destaca outro ponto de discussão urgente: a organização da jornada de trabalho, não por acaso uma das alegações mais recorrentes no boom de ações trabalhistas impetradas durante a pandemia. “Pagamento de horas extras e questões de ergonomia também têm sido levantadas na Justiça”, diz.
Apresentado em dezembro pelo deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), o projeto de lei que a advogada ajudou a elaborar está tramitando na Câmara dos Deputados apensado a outras propostas que versam sobre o mesmo tema. De acordo com a assessoria de imprensa da Casa, a matéria está na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público aguardando parecer do relator, deputado André Figueiredo (PDT-CE).
Rodas de conversa e uma nova sede
A percepção de que a pandemia exigiria uma nova e inovadora forma de trabalhar norteou a Vitacon, incorporadora imobiliária com foco na construção de prédios inteligentes, desde o início. No ano passado, a empresa aderiu ao home office para todos os colaboradores do escritório e, atualmente, está vigorando o modelo híbrido, formato que deve prevalecer no pós-pandemia.
A decisão pelo trabalho híbrido decorre justamente da bem-sucedida experiência da Vitacon durante a pandemia. Por essa razão, a empresa decidiu apostar em uma nova sede, atualmente em obras. Projetado especialmente para atender à nova realidade, o espaço contará com menos estações de trabalho, mais áreas de descompressão e de reuniões e um café aberto para a cidade. A inauguração do prédio, localizado no Jardim Paulista, em São Paulo, está prevista para julho.
“Nossa ideia é oferecer um local de trabalho no esquema de coworking, sem posições fixas e mais voltado para encontros e troca de ideias”, diz Ariel Frankel, CEO da Vitacon. “O modelo híbrido traz grandes vantagens para todos os colaboradores. Não perdemos o conforto de trabalhar em nossas próprias casas, mas contamos com um espaço preparado para os dias em que o trabalho presencial é necessário”, destaca.
Além disso, a saúde física e mental mencionada anteriormente foi outra preocupação da incorporadora. “Buscamos ajuda de profissionais que realizaram rodas de conversa e forneceram ferramentas para autoconhecimento, equilíbrio e controle”, explica Frankel. Em paralelo, atividades descontraídas foram propostas, promovendo integração e diversão. “Incentivamos a prática de atividades físicas, com ações semanais para que os profissionais pudessem fazer exercícios sem sair de casa, com toda a segurança.”
Investimentos por videoconferência
Desde o início da pandemia, em cumprimento às diretrizes estabelecidas pelo governo, a BlueTrade, escritório de investimentos com unidades no interior de São Paulo e em outros três estados e no Distrito Federal, implementou o home office para todos os colaboradores.
“Os agentes autônomos sempre tiveram maior liberdade de transitar a distância, já que tinham por rotina fazer visitas presenciais aos clientes”, conta Joy Oda, superintendente de inteligência da BlueTrade. “Inicialmente, foi uma tarefa mais simples para a nossa equipe do que para o cliente mais conservador, que aos poucos se familiarizou com as videoconferências.”
À medida que as restrições impostas pela pandemia foram flexibilizadas, parte do time dos escritórios voltou ao trabalho presencial, sempre cumprindo o distanciamento, o uso de máscaras e a higienização dos ambientes. “As mudanças foram assimiladas rapidamente. E a gente entende que, com o tempo, o modelo híbrido de trabalho vá prevalecer”, afirma o executivo.
Prova da sintonia com os novos tempos é que a BlueTrade inaugurou em Franca (SP), em dezembro, uma unidade exclusiva para o atendimento digital dos clientes. O espaço abriga a equipe de renda variável (mesa de operações da Bolsa de Valores) e foi projetado com vistas à expansão da empresa. “Por incrível que pareça, vivemos um período de franco crescimento. No ano passado, dobramos o número de colaboradores e a expectativa é ampliar ainda mais os negócios”, conta Joy Oda.
Fonte: Angélica Sales, do R7