Abusividade na vedação de transferência de ingresso adquirido online
A forma de comprar foi drasticamente revolucionada com o desenvolvimento exponencial da internet. A experiência com as compras online está cada vez mais personalizada, o que faz com que mais de 60% dos consumidores prefiram essa modalidade [1].
Com o mercado de venda de ingressos não é diferente. Os clientes, que buscam praticidade e conforto no momento de realizar uma compra, também optam por adquirir ingressos de eventos por meio de plataformas online de venda.
Atualmente, são diversos os sites que atuam no ramo de venda de ingressos, relacionados a shows, eventos, festas, esportes, dentre outros. Essas plataformas trazem inúmeros benefícios, tanto aos consumidores – que, além de terem maior conforto no momento da compra, evitando filas em portas de estádios, teatros, bilheterias diversas, também passam a estar a par de eventos de seus interesses, através de sugestões enviadas por essas plataformas — como também para as próprias empresas, que se valem da facilidade em atrair usuários para aumentar os lucros com a venda de ingressos, seja através de algoritmos para destacar os interesses relacionados ao seu consumidor, seja com a utilização de mailing destacando os principais eventos daquela semana ou mês.
No entanto, a facilidade e comodidade propiciada pelas plataformas online não podem ser consideradas como afastamento — ou desrespeito — das normas consumeristas aplicáveis na relação de compra e venda instituída com seus clientes compradores.
Como em toda relação de consumo, a compra e venda de ingressos online, se caracteriza pela existência da plataforma online de vendas de um lado (fornecedor) e o consumidor do outro, sendo necessário um enfoque especial quanto à possível existência de previsões contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, no momento da compra de ingressos.
Naturalmente, os consumidores já se enquadram como a parte mais fraca das relações comerciais, ante a nítida situação de vulnerabilidade econômica em que se apresentam, quando em comparação aos fornecedores, razão pela qual o sistema consumerista faz questão de declarar nulas, de pleno direito, todas as cláusulas que se mostrem abusivas ou que de alguma forma possam fomentar essa desigualdade.
E, muito embora tenham modernizado a forma de compra e venda de ingressos, trazendo benefícios ao público consumidor ao simplificar e agilizar essas relações comerciais, as empresas de venda de ingressos online não estão imunes às práticas e condutas consideradas abusivas pela legislação consumerista, como é o caso da vedação da transferência dos ingressos a um terceiro.
Isso porque a transferência do ingresso já adquirido e de titularidade do cliente — e, portanto, de sua propriedade — a um terceiro não identificado no momento da compra, não traz nenhum tipo de prejuízo, dano ou desvantagem ao fornecedor, ao passo que coloca o consumidor em situação de desvantagem exagerada, já que foi tolhido de exercer um direito que lhe é assegurado legalmente: a transferência de seu bem a um terceiro interessado.
Importante esclarecer que, ainda que a plataforma de vendas traga expressa previsão contratual sobre a vedação da transferência do ingresso do titular da compra para um terceiro, tal prática se mostra abusiva, já que o próprio Código de Defesa do Consumidor [2] reputa como nulas as cláusulas contratuais como estas, já que além de a impossibilidade da transferência exprimir um caráter extremamente desvantajoso ao consumidor, o óbice imposto não encontra respaldo na legislação vigente, seja ela consumerista ou civil.
Desse modo, a previsão de intransmissibilidade e pessoalidade dos ingressos adquiridos por meio de plataforma de vendas online é, por si só, prática considerada como abusiva pela legislação consumerista e pode servir de objeto para processos administrativo-sancionatórios, movidos pelos órgãos de defesa do consumidor, além de poder ser questionada judicialmente pelos consumidores que se sentirem lesados ante a impossibilidade de transferência para terceiros que não integraram relação comercial no momento de aquisição dos ingressos.
[1] https://oespecialista.com.br/mais-de-60-preferem-compra-onlinee-e-preferida-por-64-dos-consumidores-diz-pesquisa/
[2] Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) V – Exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:(…) IV – Estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
Mariana é advogada especialista em Direito do Consumidor da Innocenti Advogados.