Direito privado: regime jurídico emergencial durante a pandemia
Já realizados os respectivos trâmites na Câmara e no Senado, o Projeto de Lei (PL) 1179/2020, que altera o regramento de vários institutos de direito privado durante a pandemia da Covid-19, segue para sanção do Presidente da República, que terá 15 dias úteis a partir da entrada do texto na Casa Civil.
Diversos pontos, que atingem em cheio toda a sociedade, são tratados nesse PL, abrangendo desde questões de locação, contratos, relação em condomínios até a alteração da data de vigência da esperada LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados.
Os pontos tratados são sensíveis e geram diversos questionamentos. A finalidade das alterações propostas no PL seria amenizar, na medida do possível, as consequências socioeconômicas da pandemia, trazendo um estímulo à negociação entre as partes, evitando o máximo possível a judicialização em massa dos problemas perante um sistema judicial já bastante sobrecarregado.
Aqui vamos colocar o foco nos temas que mais se encontram presentes na rotina diária da sociedade — as relações civis privadas.
Um dos principais pontos se refere às relações de locação. Para os imóveis urbanos alugados, o PL suspende até 30 de outubro a concessão de liminares para despejo de inquilinos por inadimplência do aluguel, pelo fim do próprio prazo de locação pactuado, ou ainda, pela demissão do locatário quando seu contrato esteja vinculado ao emprego. No entanto, é premissa que a ação judicial tenha sido proposta a partir de 20 de março, data em que foi reconhecido o estado de calamidade.
Impedir o despejo até essa data busca garantir o direito de moradia e, assim, a própria dignidade humana, mas nada foi tratado acerca dos aluguéis que ficarão atrasados, ou sobre descontos ou abatimentos. Isso significa dizer que, embora o inquilino não seja despejado até outubro, sua dívida seguirá sendo a mesma e poderá ser cobrada.
Assim, o mais importante é que as partes tenham lucidez para o diálogo e uma renegociação temporária, de forma que a relação jurídica siga equilibrada. Se de um lado podemos ter um locatário com dificuldades para quitar seu aluguel, de outro temos um locador que, muitas vezes, precisa do aluguel para sua subsistência e o utiliza como se fosse um salário.
O equilíbrio como princípio contratual é mais um dos elementos integrantes do novo perfil de direito moderno, que analisado conjuntamente com a boa-fé objetiva, busca privilegiar muito mais aspectos sociais do que puramente patrimoniais. O equilíbrio contratual está ligado à ideia de investigar se o pacto eventualmente sofreu um desajuste anormal, decorrente de um fato superveniente, acarretando modificação da relação existente nas prestações de cada parte.
O princípio do equilíbrio busca concretizar também os objetivos sociais impostos pela Constituição Federal de 1988, conforme previsto no inciso I do seu art. 3º: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
Dentro desse cenário, a renegociação é o melhor que as partes têm a fazer, de forma cooperativa e colaborativa, já que, na prática, um mero abatimento com obrigação posterior de pagamento pode ser inviável de cumprimento. Pós-pandemia, não se espera que as pessoas ou empresas se remunerem com ‘superávits’ capazes de compensar as perdas, ao contrário, espera-se um cenário de recessão, que tornaria extremamente difícil honrar o trato mensal e mais o abatimento anterior concedido.
Mesmo que o contrato não traga a previsão da obrigação de renegociação em si, sua observância parece estar em perfeita sintonia com o sistema jurídico, consistindo em um dever de conduta decorrente da boa-fé e dos deveres de consideração que devem balizar o comportamento dos contraentes.
No entanto, não se nega que existe um ponto crítico, pois alguns poderão utilizar da situação de forma oportunista, nem sempre necessitando de redução. Assim, é importante que haja demonstração por parte do locatário com relação aos impactos da pandemia em sua atividade, já que não faz sentido que pessoas ou empresas que estejam com remuneração preservada peçam flexibilizações. O ônus da demonstração do impacto da pandemia em sua atividade é do locatário.
Neste ponto, ainda vale destacar a importância de manutenção de cada ecossistema, tanto na esfera da pessoa física quanto nas grandes empresas, para que, na medida do possível, possam amenizar os prováveis e fortes impactos de uma esperada crise econômica pós-corona.
Em relação aos demais contratos civis e a necessidade de eventuais ajustes, o PL faz a ressalva de que não terão efeitos jurídicos retroativos, e ainda dispõe pela impossibilidade de sua revisão em razão de variação cambial, substituição ou desvalorização de padrão monetário ou aumento da inflação, pois nestes casos faz parte do negócio jurídico e do risco assumido. Isso quer dizer que, nestes casos, não serão aceitos argumentos de imprevisibilidade ou onerosidade excessiva para fins de resolução dos ajustes ou modificação das condições.
Em outros tipos de contratos, a intervenção judicial tem mais chances de acontecer, caso as partes não acertem um diálogo e uma renegociação. Mas, embora o direito moderno abra espaço para essa possibilidade de intervenção, é muito importante que essa providência seja realmente oportuna e pontual. Caso contrário, abre-se espaço para insegurança jurídica e perda da força obrigatória do que foi pactuado.
Outro tema que ganhou relevo no PL diz respeito ao regramento interno nos condomínios, modalidade de moradia já consolidada principalmente nas grandes metrópoles. Síndicos ficam autorizados não só a proibir a utilização de áreas comuns, mas também restringir reuniões, festas e visitas dentro das unidades. Juridicamente, não há violação a qualquer direito individual ou de propriedade, mas sim plena observância de interesse coletivo na manutenção das condições sanitárias e de saúde de todo o conjunto de moradores, e mais, de forma transitória.
O síndico ainda fica autorizado a proibir o uso de estacionamento por terceiros. Neste ponto específico, parece que a tutela se direciona às chamadas vagas de visitantes ou equiparadas, pois eventuais locações estáveis e fixas de vagas, a princípio, não poderiam restar rescindidas em razão de tal súbita proibição.
As assembleias virtuais nos condomínios ficam autorizadas, inclusive para temas de aprovação de contas, destituição ou eleição de síndico. No caso de o mandato do síndico vencer neste período, sem que seja possível a realização de nova eleição virtual, então fica automaticamente prorrogado até 30 de outubro.
No cenário das pessoas jurídicas de direito privado, sejam associações, sociedades empresariais ou fundações, fica igualmente autorizada a realização de assembleias por qualquer meio eletrônico, inclusive para tratar matérias como destituição de administradores ou mudança no estatuto, mas não proíbe ou restringe a realização presencial, desde que cumpridas as medidas de proteção sanitárias indicadas pelos órgãos de saúde. As manifestações virtuais produzirão os mesmos efeitos legais de uma assinatura presencial.
Sobre a LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados, o cenário está incerto. A MP 959, editada em abril pelo presidente da República, alterou a vigência para maio de 2021. A MP é válida temporariamente, podendo, entretanto, não ser aprovada nas casas legislativas e perder sua eficácia. Se isso acontecer, a LGPD entraria em vigor ainda este ano, em agosto, já que em relação a isso, ou seja, ao início de vigência da lei, não houve nova alteração no PL, o que manteria a LGPD em sua redação original.
No entanto, por meio de alteração nos arts. 52 e 54 da LGPD, houve previsão de que as punições só comecem em agosto de 2021, o que tem coerência em razão do atual cenário, onde o foco das empresas está muito mais direcionado à sua continuidade, aos empregos, aos compromissos assumidos.
Por outro lado, a urgência no início da vigência da lei está também bastante relacionada às eleições municipais previstas ainda para 2020, no intuito de conter o grave problema de disseminação das fake news. Evidentemente que a LGPD em si mesma não barrará tal expediente, mas traz mecanismos de proteção aos dados pessoais que podem ajudar preventivamente no direcionamento das tais notícias.
No âmbito do direito das sucessões, o PL suspende até 30 de outubro a contagem do prazo de dois meses para a abertura do processo de inventário e partilha para falecimento ocorridos após 1º de fevereiro, e no âmbito do direito de família ainda prevê que o não-pagamento de pensão alimentícia poderá gerar prisão apenas na modalidade domiciliar, não sendo admitida, por questões sanitárias e de prevenção, prisão em regime fechado.
O texto ainda trata de outras situações, como suspensão dos prazos de aquisição de propriedade mobiliária ou imobiliária por meio de usucapião, suspensão ou impedimento nos prazos prescricionais ou decadenciais, suspensão do direito de arrependimento em contratos de consumo de bens perecíveis ou medicamentos, flexibilização das normas de pesagem de cargas, entre outras que não serão tratadas neste artigo para que não se amplie demais sua abrangência.
As alterações legislativas transitórias não são uma realidade apenas no Brasil, tendo sido adotadas também em outros países ao redor do mundo. A Alemanha, por exemplo, em março deste ano, aprovou medidas semelhantes, tutelando temporariamente assuntos de direito público e privado, igualmente no intuito de amenizar o impacto da pandemia e suas consequências.
Importante frisar que as disposições deste PL 1179 possuem caráter temporário e emergencial, com data final já definida (ainda que a crise da saúde traga outros desdobramentos após esta data), e que, assim, a suspensão da aplicação das normas não implica, em nenhuma hipótese, sua revogação ou alteração.
Karina Penna Neves é advogada sócia da área cível, tecnologia e ética corporativa da Innocenti Advogados. Ela é presidente da 20ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.
Fonte: Lex Latin